Diálogos: a introdução
"Tout être qui connaît un enfer durable ou passager peut, pour l'affronter, recourir à la technique mentale la plus gratifiante qui soit : se raconter une histoire. [...] Toute misère comporte son emblème et son héroïsme. L'infortuné qui peut remplir sa poitrine d'un souffle de grandeur redresse la tête et ne se trouve plus à plaindre."Amélie Nothomb - Acide sulfurique
- Me explica de uma vez essa história então. Como é que funcionam esses diálogos na sua cabeça?
Em épocas de maior proximidade física, caminhava com o outro pelo mesmo percurso de sempre, volta após volta. O silêncio o traía, estava sempre a pensar, imaginar conversas que talvez nunca existiriam. Era como se sua boca formasse as sílabas, as palavras, as frases, mas elas se recusavam a sair. É claro que havia um pouco de decisão nesta recusa, mas já havia perdido o controle da própria recusa, e não conseguia mais evitar o mutismo.
- Não é nada tão complicado - começou a responder, tentando convencer a si próprio mais do que convencer o outro. Quando eu estou pensando, normalmente eu me pego pensando numa conversa com alguém, e fico imaginando essa conversa.
- Lembrando de uma conversa que você já teve com uma pessoa qualquer, você quer dizer?
- Não, não é lembrança. Eu imagino como se desenrolaria um bate-papo com alguém.
Na sua mente era uma falação constante. Papo furado, de um tipo despretensioso, que vai andando meio que sem rumo, tropeçando e caindo em outro assunto. Às vezes virava papo sério, desses a evitar a todo custo e que terminam com alguém triste. E discutiam também o silêncio, essa mesma discussão de agora ao telefone, e o primeiro defendia-se também em pensamento, e o raciocínio era que as palavras eram supérfluas quando se conhece alguém tão bem. Era uma péssima desculpa, e sabia disso, mas na sua cabeça o outro concordava.
- Daí no seu mundo das ideias você fala algo pra essa pessoa, e inventa o que ela te diria de volta?
- Não é um exercício de invenção. Eu me imagino trocando uma idéia com meus amigos, com as pessoas do trabalho, com a minha família. Daí eu já sei um pouco o que as pessoas vão dizer - mordeu o lábio para tentar corrigir a frase, mas já era tarde demais, e sorriu ao ver-se pego no argumento ruim.
- Somos todos tão previsíveis à sua volta?
Mas andando em silêncio o outro não concordava. E também não concordava com a pressa, que às vezes convém ter, como dizia o primeiro. E com a diferença de opinião e a diferença de passo se distanciaram. No mesmo circuito fechado, eventualmente se cruzavam, e se deliciavam com o encontro, e se separavam de novo, cada vez por mais tempo.
- Você cria mentalmente uma conversa com uma outra pessoa, até quando ela está do seu lado de verdade? - o outro continuou, sem esperar resposta para a última pergunta.
- Sim, às vezes acontece. E o que eu quis dizer antes é que quando se conhece alguém não é difícil saber como um papo fluiria.
- E mesmo assim você precisa encenar os diálogos antes de tê-los?
- Eu não fico praticando o que vou falar. São conversas que talvez um dia aconteçam, e neste caso, provavelmente serão diferentes do que havia se passado nos meus pensamentos. Isso não é tão anormal assim, já foi até documentado por aí, li um texto uma vez, algo sobre um palhaço qualquer, azul, sei lá, nem lembro...
Ele tinha parado de ouvir, e interrompeu:
- Você já teve um diálogo desses comigo em que discutíamos isso?
Hoje já quase não se veem, mas eventualmente trocam cordialidades pelo telefone, cada um no seu monólogo, às vezes quebrado por algum momento de nostalgia. Despediram-se, e ao desligar o primeiro sabia que toda a conversa já havia se passado na sua imaginação muito antes. O que não trazia conforto, só mais melancolia.
Em épocas de maior proximidade física, caminhava com o outro pelo mesmo percurso de sempre, volta após volta. O silêncio o traía, estava sempre a pensar, imaginar conversas que talvez nunca existiriam. Era como se sua boca formasse as sílabas, as palavras, as frases, mas elas se recusavam a sair. É claro que havia um pouco de decisão nesta recusa, mas já havia perdido o controle da própria recusa, e não conseguia mais evitar o mutismo.
- Não é nada tão complicado - começou a responder, tentando convencer a si próprio mais do que convencer o outro. Quando eu estou pensando, normalmente eu me pego pensando numa conversa com alguém, e fico imaginando essa conversa.
- Lembrando de uma conversa que você já teve com uma pessoa qualquer, você quer dizer?
- Não, não é lembrança. Eu imagino como se desenrolaria um bate-papo com alguém.
Na sua mente era uma falação constante. Papo furado, de um tipo despretensioso, que vai andando meio que sem rumo, tropeçando e caindo em outro assunto. Às vezes virava papo sério, desses a evitar a todo custo e que terminam com alguém triste. E discutiam também o silêncio, essa mesma discussão de agora ao telefone, e o primeiro defendia-se também em pensamento, e o raciocínio era que as palavras eram supérfluas quando se conhece alguém tão bem. Era uma péssima desculpa, e sabia disso, mas na sua cabeça o outro concordava.
- Daí no seu mundo das ideias você fala algo pra essa pessoa, e inventa o que ela te diria de volta?
- Não é um exercício de invenção. Eu me imagino trocando uma idéia com meus amigos, com as pessoas do trabalho, com a minha família. Daí eu já sei um pouco o que as pessoas vão dizer - mordeu o lábio para tentar corrigir a frase, mas já era tarde demais, e sorriu ao ver-se pego no argumento ruim.
- Somos todos tão previsíveis à sua volta?
Mas andando em silêncio o outro não concordava. E também não concordava com a pressa, que às vezes convém ter, como dizia o primeiro. E com a diferença de opinião e a diferença de passo se distanciaram. No mesmo circuito fechado, eventualmente se cruzavam, e se deliciavam com o encontro, e se separavam de novo, cada vez por mais tempo.
- Você cria mentalmente uma conversa com uma outra pessoa, até quando ela está do seu lado de verdade? - o outro continuou, sem esperar resposta para a última pergunta.
- Sim, às vezes acontece. E o que eu quis dizer antes é que quando se conhece alguém não é difícil saber como um papo fluiria.
- E mesmo assim você precisa encenar os diálogos antes de tê-los?
- Eu não fico praticando o que vou falar. São conversas que talvez um dia aconteçam, e neste caso, provavelmente serão diferentes do que havia se passado nos meus pensamentos. Isso não é tão anormal assim, já foi até documentado por aí, li um texto uma vez, algo sobre um palhaço qualquer, azul, sei lá, nem lembro...
Ele tinha parado de ouvir, e interrompeu:
- Você já teve um diálogo desses comigo em que discutíamos isso?
Hoje já quase não se veem, mas eventualmente trocam cordialidades pelo telefone, cada um no seu monólogo, às vezes quebrado por algum momento de nostalgia. Despediram-se, e ao desligar o primeiro sabia que toda a conversa já havia se passado na sua imaginação muito antes. O que não trazia conforto, só mais melancolia.
2 comentários:
Muito bom!
É fato: a previsibilidade torna a coisa desinteressante. Mas há quem goste, por causa da segurança. Legal é quando o outro muda e a previsão do diálogo falha.
Gostei da sua verve literária intevindo nas crônicas.
Cara, que poetico! Muito legal!
--Ester
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